Salma Hayek, por Hellen von Unwerth
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Sempre fui alvo de pessoas que falam coisas sem pensar. Fazem isso sempre com as melhores das mais diabólicas intenções, tentando não me magoar. Pois bem, falar é fácil e as pessoas não têm idéia das atrocidades que cometem quando opinam e aconselham sobre a vida alheia. Ele, principalmente, acha que sou sensível demais e até um pouco birrenta, mas não sei não, à essa altura, com todo mundo achando que as mulheres devem ser modelos de sobriedade e autocontrole, eu sou mesmo uma santa.
Desde o começo de namoro, ele ficou a par de toda a minha história de vida e problemas traumatizantes da infância. Agora vem me dizer que preciso ser diferente. Meu Deus! Com 43 anos não se muda de personalidade, nem de costumes! Ele trouxe até a irmã para tentar ajudar com meu ‘problema psicológico’. Isso tudo só porque tenho o hábito de temperar a comida com tempero pronto, me recuso a usar cebolas. Ele e a família, todos psicólogos de nascença, acreditam na superação desse trauma. Quando vejo a irmã dele entrar, meu corpo treme incontrolavelmente. Em minha cabeça vozes vociferam os mais profanos palavrões, inclusive, alguns que eu nem sei o que significam, mas de maneira elegantemente irônica viro para ela e solto: – De novo, Luíza? Já disse ao Rubem para não te incomodar com isso! Ela faz a maior de todas as tentativas para se aproximar e explicar que preciso de ajuda, não só pelo fato de odiar cebolas, mas pelo significado disso para mim.
Então tá, vou explicar: quando eu era criança, tinha péssimos hábitos alimentares, aliás, como a maioria das crianças. Meu pai me ameaçava com um cinto, me fazendo comer toda a cebola da salada. Mais tarde, na adolescência, minha mãe foi morta por assaltantes quando saía do supermercado e tinha nas mãos um pacote de cebolas. Desde então, as cebolas vêm me acompanhando pelos piores momentos da vida. Por isso, Rubem e toda a sua família acham que guardo uma arquitetura de traumas devido aos episódios com as cebolas.
Enquanto Luíza derrama toda sua explicação filosófica para tentar me salvar da tal perdição enlouquecedora, eu pratico um dos meus exercícios favoritos: converso comigo mesma. Faço planos para o fim de semana e penso nas contas à pagar. Às vezes, olho para ela e vejo sua boca mexendo sem parar, como se estivesse dentro de uma televisão no mudo. Não escuto nada.
O que Rubem e sua corja não entendem é que não estou nem aí para as tais cebolas. Não uso por pura vaidade. E, de fato, quando ele insiste, me deixa profundamente irritada. Mais importante do que a aversão às cebolas, e que eles não percebem, é que tenho apenas um defeito quase genético: sou patologicamente incapaz de agüentar merda de quem quer que seja.
Nesse momento estou no limite da minha tolerância, enquanto Luiza continua a falar descontroladamente. Se ela imaginasse o grau de ebulição do vulcão que existe dentro de mim, pararia imediatamente. Assumo um ar sombrio e tempestuoso que ocupa todo o meu rosto como se eu tivesse acabado de descobrir asas de barata do meu sanduíche. Volto para ela com os olhos faiscando e riscando o ar com uma só expressão: fo-ra da-qui!
– Luiza – interrompo, a deixando boquiaberta – já li quase todos esses livros: a grande busca pelo significado da vida, para qual história minha família me encaminhou. Sei de tudo isso e não ignoro totalmente, apesar de algumas atitudes recentes demonstrarem o contrário. Agora peço desculpas, mas estou de saída e é urgente.
Sem maiores explicações saio da sala, enquanto ela se debate no sofá e penso: agora sim me despedi da minha derradeira imagem de pessoa elegante e equilibrada. Sou uma destruidora. Anarquista. Hooligan. Selvagem. Bruxa. Na realidade uma terrorista, o que por dentro me traz uma gostosa sensação de contentamento.
Sei o que irão avaliar agora. Vão me depreciar com coisas do tipo: não sou confiável, sou imprevisível, propensa a acessos espontâneos de ironia, irresponsável, rabugenta. Vai ser o discurso habitual para acabar comigo. E para falar a verdade, senti mesmo vontade de avançar em sua garganta até o sufocamento. Depois, iria como sombra de Rubem ao funeral, surpreendendo a todos atrás do meu óculos Calvin Klein, com um erguer tumular de sobrancelhas significando ‘isso foi só um aviso’. Mas só o fato de me ver livre de sua dissertação psicanalítica das cebolas já enche de sol o meu coração e, em estado de graça, vou dançando e saltitando pelas lajotas da garagem até onde deixo meu carro. Depois disso, logo pela manhã, estou ansiosa por um cansativo dia de trabalho. Compreendo inteiramente que Rubem e sua família sintam as mais sofridas emoções humanas, mas há limites: meus intestinos simplesmente não conseguem mais suportar. Claro que o que realmente quero fazer é socar os malditos, arrancar os cabelos, berrar muito e arranhar a cara deles até que ficarem esfolados vivos. Talvez assim, me digam por que estão fazendo isso comigo e com as drogas das cebolas!
Trabalho o dia todo pensando nesses atos insanos de esquartejamento. À noite, chego em casa à tempo de cozinhar o jantar e, mais uma vez, me nego a usar cebolas.
Rubem aparece à porta e sinto no ar sua respiração. Quando começa a abrir a boca para me dirigir a palavra viro em sua direção com uma enorme faca apontando-lhe o corte e berro:
– Não vou usar cebolas porque elas me fazem chorar! E che-ga!
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Samantha Abreu
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Conto baseado no livro “Viciada em Feng Shui”, de Brian Gallagher.
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toda a sua história de vida e problemas traumatizantes de sua infância podem ser uma perigosa arma, contra vc. Adorei o texto. abração
muito, muito boa.. malditos psicanalistas!!
só no fio da faca com essa gente mesmo..rsrs
(brincadeira)
Uma mistura bem temperada de Almodovar ( que choro é esse, menina !) com uma auto-ajuda de relacionamentos baseados no punk rock.
E mais: Vc, Samantha, não tem 43 anos, mas soube falar como uma que tem. Que coleciona as novidades de cremes “Age Reverse”. Enfim, literatura.
Outro dia, recomendei
(…recomendei)…que o Galera viesse ler vc. Hoje se amplia a gama e matizes: De Fernanda Young até Clarah Averbuck, venham meninas, ver como se faz mulher.
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Beijos, moça.
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Adorei o texto!!!
Quem já não passou por isso!?heheh!
Alguem querendo ou melhor achando que pode e acha capaz de julgar a vida dos outros! Muitas vezes não consegue nem se ajudar ou julgar si próprio…
É lógico que todos nós podemos e devemos ajudar ao outro. Mais por favor…pegue leve!
Perfect!!!…like always….
Love you my friend sweety peper!!!
bjãaaaaaaaaaaaaoooo Sasa…
Grande texto. Literatura é isso aí, socar os malditos.
Menina, vc tem talento!
Bjos flor!
Que belo texto, fico cada vez mais impressionada com a forma com que se expressa através de histórias que não são suas mas que toma como se fossem…e a gente se apossa de fragmentos dela como se traduzissem a história que ainda não contamos….uma deliciosa viagem.
Beijos,
Eu, como psicanalista que sou, fiquei foi P da vida com essa chata da Luísa!!!! Ela é sim uma mala intrometida!!!! Afinal, somos é conhecidos por não falarmos nada, né? De ficarmos mudos (e até dormindo, huahuhauhauuhua) enquanto o paciente discorre seus pesares. E as vencedores, às batatas (e aos perdedores, às cebolas)
Bjos, lindona!
erguer tumular de sobrancelhas – ótimo transmissor de mensagem. sem dúvidas o que mais funciona!
Malditos sabe-tudo. Dou razão à protagonista… Ô povo chato! hehehhe
Muito bom, Sá!
Uma ótima semana,
beijinhos.
Sensacional, Samantha. Concordo com o Castro, lembra Almodovar.
Bem, cebolas só no Cheddar ou na comida chinesa.
grande abraço.
Sá!
Eu achei tudo de mais bárbaro que li nos últimos dias! Sabe aquelas obras perfeitinhas, sem tirar nem pôr?! É essa aqui.
Beijos!
Cebolaaaaaaaaaaaas eu adoro, principalmente frita 😀 Chorar também, ainda mais de frente pro espelho kkkkkkkkkkkkkk
Nossa, Samantha, como não vim aqui antes? Menina, mto bom o texto. Volto pra ler e comentar os outros.
Humor e acidez são os melhores temperos, melhores até que cebolas. 😛
Tua criatividade supera todos os personagens; aí sim parace que imita a vida.
Muitíssimo bom!
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Nó! Gostei demais,eu venho sempre aqui, e tu tá lá linkada no blog!
beijos!
leminiskata.blogspot.com
Isso! Explosão!!!
Adoro!!!
Esse balde já tava criando lodo, de tanto tempo que ela demorou pra chutar…
Beijões!
Eu adoro cozinhar, não suporto temperos prontos e amo por demais as cebolas. Será que preciso de uma consulta com a Luiza? Quanto ao texto, sem comentários. Apenas dizer que é tão bom como cebola. Beijos!
Muito bom o texto!
Não conhecia o Blog mas gostei muito, vou ler os outros textos.
Falando em tempero você soube temperar muito bem seu texto com, sarcasmo, ironia e humor.
Gostei pois você usa a história das cebolas para contar fatos que acontecem com todos no cotidiano. Que faz com que nos torne cumplices.
Continue com os textos.