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Mudamos!

Queridos!

as Descontroladas mudaram de endereço.

O divã, agora, é outro.

Corram aqui ó:

http://mulheressobdescontrole.blogspot.com/

Esperamos vocês lá.

Beijos!

Sweet Pimenta

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foto de Ellen von Unwerth
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– E essa aqui?

– Ah não, essa não combina com a minha.

– Ah, meu Deus! Pode parar!

– É que uma vez namorei um cara que só usava cores fortes. Aí eu, pra equilibrar, tinha que vestir preto ou branco, sempre cores neutras. Depois namorei o… ah, você não conhece, que me deixava usar a cor que eu quisesse, mas em compensação ele não usava nada: saía pela rua com o peito cabeludo à mostra. Eu tinha tanta raiva que acabava ficando em casa só pra ele não sair daquele jeito. Cansei me negligenciar.

– E eu que pago por isso?

– Eu só quero que você vista essa camisa verde! Fica uma coisa meio latina, eu gosto assim.

– Argh!

– Acho que vou de peruca. O que você acha?

– É… fica uma coisa assim meio ridícula, mas eu gosto.

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Ela falou por um bom tempo sobre toda sua experiência com caras que a impediam de se evidenciar, do sofrimento por não poder usar as roupas que queria, nem o tipo de cabelo que estava na moda. Ele tentava imaginar todas aquelas histórias de uma maneira divertida. Começou a pensar em todas as crises de nervos que ela deveria ter tido, e como ficava engraçada quando nervosa: o rosto deformado pela raiva e pálido como só ela conseguia ter. Segurava o riso de canto. Ela falava, desabafava toda sua mágoa com a falta de cores no seu passado, e como queria viver com ele uma vida diferente.

Sentiu uma vontade louca de tomar a peruca da mão dela, só pra vê-la berrar.

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– Você está me ouvindo?

– Imagino como deve ter sido difícil pra você. Mas essa peruca vai ficar ridícula com essa blusinha florida.

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Foi assunto para mais meia hora de monólogo, enquanto ele viajava em subdimensões do passado constrangedoramente traumatizante que pra ela era motivo para novas experiências, e pra ele motivo de sarro. Ela ia e voltava pelo corredor, parava frente ao espelho e gesticulava. Até que ficava bonita assim, de camisa florida, calcinha de algodão e meias. Tanta mulher preocupada em se arrumar demais – até peruca compra – e ela bonita daquele jeito, quase nua.

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– Não levanto dessa cama hoje se você colocar essa peruca.

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O rosto pálido começava a ficar vermelho. Ele divertia-se mais a cada provocação, vendo-a se desesperar pela falta de argumentos e ser tomada pelo cansaço.

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– Beto. Por-ra! Custa você colocar essa droga de camisa verde?

– Você desiste da peruca?

– Não é justo eu ter que deixar de lado uma vontade tão antiga…

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Delícia vê-la fora de si frente à total calma e serenidade com que ele parecia irredutível.

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Ela se sentou na cama, ficou de cabeça baixa e muda por alguns minutos, nem parecia mais a sua pimentinha.

Assustadoramente, ela se virou jogando os cabelos pra cima e berrou:

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– Eu vou colocar essa droga de peruca e você essa merda de camisa. Agora! Agoraaaa! Ou eu vou sozinha nessa festa! …

…Tá duvidando?

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Com os olhos arregalados, ele foi se arrastando devagar até a beirada da cama, pegou a camisa do chão e vestiu.

Nervosa era engraçada, mas louca ele tinha medo.

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Samantha Abreu

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foto: Ellen von Unwerth
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– Ah, menina, você viu como elas são legais?! Eu a-do-ro aquele salão.

– Humm…

– Só tem mulher bonita, rica, charmosa. Pessoas que nos fazem bem ter por perto, sabe, prima? Eu te disse, não disse? Penso em te trazer aqui des-de quando você disse que viria. Eu sa-bia que você ia amar. Dá pra gente marcar de novo pra semana que vem. Aí, você faz as unhas.

– Mas eu mesma prefiro…

– Nem-pen-se nisso! Uma mulher de glamour ja-mais pinta as próprias unhas. Salões de beleza foram feitos pa-ra isso. Manicuras estudaram a-nos e a-nos pra tirar cutículas como as minhas e daquelas mulheres que você conheceu lá.

– Beth, mas minha vida não é…

– É-sim. Pense positivo, Lucinha. É-sim. Você é uma mulher rica, chique, e pre-ci-sa freqüentar salões daquele nível. São pessoas de classe e requinte. Vão te convidar pra festas ma-ra-vi-lho-sas.

– Ah, tá. Agora fiquei muuuito interessada. Ah, por favor, Beth!

– Oras! Quem sabe você conhece um suuu-per cara. Lindo, educado e com muita grana pra te comprar jóias e roupas.

– Grana pra ter estudado também, né? Porque, pelo amor de Deus, ô mulherada burra e vazia, hein!

– Você não sabe de-na-da, prima. Todas estudaram fora.

– Sei… gastaram grana lá fora, você quer dizer.

– Que pensamento de po-bre!

– Pá-ra de falar pausado comigo. Isso me ir-ri-ta.

– Tudo te ir-ri-ta. Até tirar a sobrancelha te irrita.

– Não, o que me irritou foi aquele cara ficar falando sem parar em cima da minha cara. Falando, falando, falando.

– Ele é um lu-xo! Até Gretchen depila com ele.

– À puta-que-pariu aquela Konga. Era só trocar o K pelo E-ME e ela poderia ser a mulher barbada!

– Genteeemm!

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.Samantha Abreu 

Sub-Missão

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foto: Ellen von Unwerth
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Sou mulher submissa como minha mãe, minha avó e todas as minhas antepassadas. Tradição é tudo, gente! Detesto mulheres que inventam de querer trabalhar fora e conquistar o mundo. Essa de querer pagar as próprias contas serve pra mulher que nunca experimentou o que é depender de um homem. Homem de verdade, estou dizendo, hein.

Arnaldo é meu homem de verdade. Paga minhas calcinhas de lycra, meus cremes da Avon e em todo aniversário ele me dá um presente caro. Ano passado ganhei uma máquina de fazer pão. Ele pensa tanto em mim que sempre procura facilitar meu esforço. Por isso, quando ele volta do trabalho estou sempre cheirosa e preparada para recebê-lo, de janta posta e prato feito. Sou o orgulho da minha família. Corro o dia todo pra deixar tudo do jeito que ele gosta e as almofadas prontas para aconchegá-lo no sofá, depois de um cansativo dia de trabalho. Coitado, ele chega sempre exausto!

Não tenho do que reclamar. Acordo todos os dias bem cedo, antes do Arnaldo, para preparar o café da manhã. Ele não pode sair sem comer, de jeito nenhum! Logo que ele vai trabalhar, eu inicio os afazeres da casa, começando por lavar as roupas. No tanque, obviamente. Prefiro lavá-las a mão para que não esgarcem ou estraguem os colarinhos das camisas do meu marido, que é sempre tão caprichoso na forma como se veste.

Quando as crianças acordam, ajudo-as com as tarefas da escola, pois o Arnaldo não aceita que elas tenham nota baixa. Deus me livre disso acontecer, Arnaldo me mata! Então fazemos juntos os deveres, pacientemente. Depois, faço o almoço, elas comem e vão para a escola. Passo o resto do dia atarefada com a limpeza e com a faxina. Fico até emocionada quando falo disso!

Ao final da tarde, quando as crianças voltam, me apresso em arrumá-las para que não atrapalhem o Arnaldo. Ele detesta esperar para tomar banho. Troco as toalhas, pois a dele tem que ser lavada e macia, todos os dias. Meu marido é tão asseado! Fico até orgulhosa! Só é uma pena porque depois que ele chega eu não posso ver televisão. Ele reclama que eu converso durante os programas e o atrapalho. Por isso, tenho que ficar no quarto enquanto ele se atualiza com os jornais. Mas é bom porque me adianto em algumas costuras, bordados e já o espero na cama para nossa noite de amor.

E assim me sinto mulher. Por inteiro.

Arnaldo, sim, é homem de verdade! Não é desses que permitem mulher independente, não. Por isso que essa mulherada está aí, perdida, com a cabeça virada.

Não se faz mais homens como antigamente. Homens que mandavam na gente, simplesmente.

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Samantha Abreu

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Drew Barrymore, por Ellen von Unwerth

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Nem o direito a não querer mudar de vida a gente tem. Quantas mulheres já tentaram, persistiram e, quantas, meu Deus, fracassaram? Estas histórias, as revistas não mostram. Ou seja, essas drogas de revistas não servem nem pra nos colocar no nosso lugar. Elas deviam dizer: “Você, querida gorducha, se toca e desiste. Vá se matar de comer doce que ganha mais”. Não, nada disso. Mostram aquelas magras filhas da mãe, que perderam milhões de quilos tomando sopa, mais dezenas de celulites em roupas plásticas e outro monte de gordura na privada, metendo o dedo na goela.

Sempre fiz de tudo para me dar bem acreditando e vendo o que as pessoas são além da aparência. Menosprezo ninguém merece! O desgraçado do meu marido chega toda semana com uma dessas porcarias de revista, repleta de dicas e receitas, para eu emagrecer. Não posso ser assim? Ameaçou até sair de casa e disse que eu preciso me cuidar mais e me valorizar. Será que eu não posso, pura e simplesmente, dar mais importância a meu cérebro do que a essa droga de barriga retíssima?

Agora, vem cá. Como é que eu, com essa idade, vou jogar um casamento de tantos anos fora? Não teve jeito. Faz uma semana que estou correndo lá na quadra do prédio. E, o pior de tudo, meu Deus, são aquelas crianças brincando, correndo atrás de mim, cheias de gracinhas, elas quase me fazem tropeçar. Juro que, se eu cair, derrubo uma delas e ainda rolo por cima. Vai até ficar grudada no chão, a peste. Sem mencionar os cachorros latindo, felizes da vida, como se eu estivesse ali só para brincar com eles. Quero morrer!

Arquitetei um plano para provar àquele traste como essas revistas são mentirosas e manipuladoras. Todos os dias, depois da minha corrida diária, tomo banho calmamente e me sento tranqüila em meu sofá diante da TV. Desenterro todos os meus filmes de romance antigos. Estou aproveitando para rever todos eles. Hoje, pela vigésima vez, assisti “Tarde demais para esquecer”. Isso me dá tanto apetite emocional que devoro todos os doces, chocolates e sorvetes que meu bom salário me permite comprar. Bom salário, aliás, conseguido por conta do meu cérebro, e não da minha bunda!

Já engordei sete quilos em quase um mês.

Vamos ver quem ganha: eu ou a droga da Boa Forma!

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Samantha Abreu  

Última Chance

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Foto: Ellen von Unwerth

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         Não senhor, não quero deitar nesse sofá. Prefiro assim, em pé. E também, tem outra: o que quero falar é coisa rápida. Pá-Puf. O senhor me diga logo o que significa isso que estou sentindo porque, senão, eu mato aquele desgraçado. Deu pra entender, doutor? A vida daquele crápula está em suas mãos.

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         O quê? Eu nunca fiz isso. Ele inventa essa história todas as vezes que alguém pergunta sobre minhas atitudes. Olhe pra mim, doutor, o senhor acha que eu, uma mulher séria, ia fazer escândalo no meio da rua? Só por que ele resolveu, de um dia para o outro, que não quer mais a vida comigo? Não fiz isso não! Mentira dele. Se bem que não seria nada mal fazê-lo passar vergonha uma vez na vida, pra ver se ele toma um pouco na cara.

         Ah, doutor! Ele fala isso pra todo mundo! Aposto que disse também que eu quebrei as janelas da nova casa onde ele está morando, não disse? Está vendo, eu sabia! Ele conta só a parte que interessa. Veja, não foi bem assim. Eu só joguei aquela pedra porque vi uma sombra lá dentro e tenho certeza que era de outra mulher. Aposto que era!

         Como assim “o que tem demais”? Homem que é meu eu não divido não, doutor! É, a gente já estava separado sim, mas ainda existia amor. Só da minha parte? Foi ele que disse isso para o senhor, doutor? Ele vai continuar negando que me ama? Ah, ele pensa que engana quem? O senhor acreditou? Que ótimo! E eu vou confiar em quem agora?

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       Bem, esse papo não vai dar em nada. Eu lhe dei a chance de salvar aquele cretino. Já que ele não admite, vou cortar a língua e o pinto daquele filho da mãe. Depois disso, quero ver se ele continua negando que me ama. E quero ver se vai conseguir amar outra.

         E a culpa vai ser sua, doutor.

         Passar bem.

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Samantha Abreu

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Fernanda Torres no filme Casa de Areia

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Bom, doutor, é o seguinte: amo a um, vivo com outro e desejo um terceiro. Isso tudo me bloqueou e eu não consigo mais trabalhar.

Há cinco anos, todos os dias, escrevo horóscopos no jornal. Não, não sou astróloga, vidente, mãe de santo, nada disso. Gosto mesmo é de inventar histórias e imaginar a cara de quem as está lendo. Então, um dia, escrevo uma mensagem triste e, no outro, uma mais alegre, assim o leitor valorizará mais os bons momentos. É isso que acontece comigo e, acho, com todo mundo, né?

Eu amo tanto o Aristides, doutor, mas tanto, tanto, que a gente não sabe conviver. Somos como cão e gato e, ainda por cima, fica todo mundo falando que um dia a gente casa! Casa, nada! E, se casar, é bem capaz de um matar o outro. Ele agora resolveu fazer que não me vê. Deve ser porque descobri que ele estava de caso com uma sambista lá da vila. Aí, o senhor acredita que eu escrevi no signo dela que seria traída e ainda mandei o jornal de presente? No dele — que é ariano, o desgraçado — disse que cometeria uma grave traição por ser incapaz de ser fiel. Ah! Quando ela leu as previsões, casou as informações e mandou o Aristides embora. Agora, ele acha que a culpa foi minha! Quem manda querer me fazer de besta e arrumar uma mulher que crê em horóscopo?!

Com o Genival, é diferente. Ele faz tudo o que eu quero, me enche de mimo e agüenta as bordoadas. É isso mesmo, doutor, não sou mulher de dar mole pra homem não. Toda mulher tem mais é que judiar do cabra, quando tem oportunidade. Não tenho culpa do trouxa da vez ser o Genival, coitado! Minto tanto pra ele que, às vezes, até me esqueço do que inventei e ele percebe. Mas sempre dou um jeito de contornar a situação e invento outra história melhor, ele acaba se sentindo mal por ser tão ciumento e desconfiar de uma mulher direita como eu. Também escrevo umas coisas legais no signo dele, principalmente quando percebo que ele anda meio desconfiado. Peço que confie na pessoa amada e essas baboseiras todas. O mosca-morta nem imagina que sou eu quem escreve tudo aquilo, e, como não gosta muito dessas previsões (tem vergonha, só porque nasceu Touro, coitado, né?!), só lê o horóscopo quando insisto muito.

Quando arrumei esse emprego, o Aristides foi comigo, a gente estava nos bons tempos do começo, e ele me recomendou que não contasse a ninguém, senão iam saber que é tudo mentira. Todo mundo pensa que eu trabalho no telemarketing, sabe? Só o traste do Aristides sabe a verdade.

Ah, doutor, o pior de tudo é que o Paulão apareceu. Ele faz parte do meu passado, entende? Namoramos quando eu era meninota, tinha 18 anos, e o Paulão, 30. Ele me fez mulher, desabrochei pra vida e agora, depois de dez anos, a tentação reapareceu! Tenho dó é do Genival, porque o coitado tá levando uns chifres na testa. Mas não consigo resistir ao Paulão, doutor, mulher nenhuma consegue, não há meio. O homem é grande, bonito, cheiroso, Ave Maria! Dei até pra escrever no horóscopo dele, que é escorpião, que ele vai voltar com um antigo amor. Nem sei se ele lê ou acredita nessas coisas, mas vai que… né?!

Não é que ele me mandou de presente uma calcinha de renda vermelha? Genival quase enfartou! Tive que dizer que era brincadeira das meninas lá do call center. O Genival queria que eu a usasse com ele! Como?! Antes do Paulão, doutor?! Tive que sair com Paulão de emergência, numa terça-feira à tarde, pra poder usar a calcinha primeiro com ele. Meu Deus! Fiquei boazuda com aquela calcinha, o senhor precisava ver! O azar é do Aristides, aquela mula que inventou de empacar e não me dar bola!

Então, esse é o motivo pra eu estar aqui. O único jeito de resolver tudo isso é sair desse emprego. Assim, continuo com meus homens, fico mais concentrada neles e não preciso ficar dando conselho pra essa mulherada desocupada, que fica lendo horóscopo no jornal.

Agora, doutor, veja aí minhas contas que vou embora. Não quero mais trabalhar aqui não, até porque o Genival não quer que eu ande com as meninas desse lugar, por causa da história da calcinha vermelha. Ele me disse que vai me pagar uma mesada só pra eu cuidar da casa! O Paulão não se agüenta de tanta alegria.

O Aristides, aquele ordinário, tá com ódio de mim e não quer mais que eu escreva horóscopos, senão ele não arruma mais namorada.

Tá vendo, doutor, como meu problema é esse emprego?!

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Samantha Abreu

Tempero Pronto

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Salma Hayek, por Hellen von Unwerth

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Sempre fui alvo de pessoas que falam coisas sem pensar. Fazem isso sempre com as melhores das mais diabólicas intenções, tentando não me magoar. Pois bem, falar é fácil e as pessoas não têm idéia das atrocidades que cometem quando opinam e aconselham sobre a vida alheia. Ele, principalmente, acha que sou sensível demais e até um pouco birrenta, mas não sei não, à essa altura, com todo mundo achando que as mulheres devem ser modelos de sobriedade e autocontrole, eu sou mesmo uma santa.

Desde o começo de namoro, ele ficou a par de toda a minha história de vida e problemas traumatizantes da infância. Agora vem me dizer que preciso ser diferente. Meu Deus! Com 43 anos não se muda de personalidade, nem de costumes! Ele trouxe até a irmã para tentar ajudar com meu ‘problema psicológico’. Isso tudo só porque tenho o hábito de temperar a comida com tempero pronto, me recuso a usar cebolas. Ele e a família, todos psicólogos de nascença, acreditam na superação desse trauma. Quando vejo a irmã dele entrar, meu corpo treme incontrolavelmente. Em minha cabeça vozes vociferam os mais profanos palavrões, inclusive, alguns que eu nem sei o que significam, mas de maneira elegantemente irônica viro para ela e solto: – De novo, Luíza? Já disse ao Rubem para não te incomodar com isso! Ela faz a maior de todas as tentativas para se aproximar e explicar que preciso de ajuda, não só pelo fato de odiar cebolas, mas pelo significado disso para mim.

Então tá, vou explicar: quando eu era criança, tinha péssimos hábitos alimentares, aliás, como a maioria das crianças. Meu pai me ameaçava com um cinto, me fazendo comer toda a cebola da salada. Mais tarde, na adolescência, minha mãe foi morta por assaltantes quando saía do supermercado e tinha nas mãos um pacote de cebolas. Desde então, as cebolas vêm me acompanhando pelos piores momentos da vida. Por isso, Rubem e toda a sua família acham que guardo uma arquitetura de traumas devido aos episódios com as cebolas.

Enquanto Luíza derrama toda sua explicação filosófica para tentar me salvar da tal perdição enlouquecedora, eu pratico um dos meus exercícios favoritos: converso comigo mesma. Faço planos para o fim de semana e penso nas contas à pagar. Às vezes, olho para ela e vejo sua boca mexendo sem parar, como se estivesse dentro de uma televisão no mudo. Não escuto nada.

O que Rubem e sua corja não entendem é que não estou nem aí para as tais cebolas. Não uso por pura vaidade. E, de fato, quando ele insiste, me deixa profundamente irritada. Mais importante do que a aversão às cebolas, e que eles não percebem, é que tenho apenas um defeito quase genético: sou patologicamente incapaz de agüentar merda de quem quer que seja.

Nesse momento estou no limite da minha tolerância, enquanto Luiza continua a falar descontroladamente. Se ela imaginasse o grau de ebulição do vulcão que existe dentro de mim, pararia imediatamente. Assumo um ar sombrio e tempestuoso que ocupa todo o meu rosto como se eu tivesse acabado de descobrir asas de barata do meu sanduíche. Volto para ela com os olhos faiscando e riscando o ar com uma só expressão: fo-ra da-qui!

Luiza – interrompo, a deixando boquiaberta – já li quase todos esses livros: a grande busca pelo significado da vida, para qual história minha família me encaminhou. Sei de tudo isso e não ignoro totalmente, apesar de algumas atitudes recentes demonstrarem o contrário. Agora peço desculpas, mas estou de saída e é urgente.

Sem maiores explicações saio da sala, enquanto ela se debate no sofá e penso: agora sim me despedi da minha derradeira imagem de pessoa elegante e equilibrada. Sou uma destruidora. Anarquista. Hooligan. Selvagem. Bruxa. Na realidade uma terrorista, o que por dentro me traz uma gostosa sensação de contentamento.

Sei o que irão avaliar agora. Vão me depreciar com coisas do tipo: não sou confiável, sou imprevisível, propensa a acessos espontâneos de ironia, irresponsável, rabugenta. Vai ser o discurso habitual para acabar comigo. E para falar a verdade, senti mesmo vontade de avançar em sua garganta até o sufocamento. Depois, iria como sombra de Rubem ao funeral, surpreendendo a todos atrás do meu óculos Calvin Klein, com um erguer tumular de sobrancelhas significando ‘isso foi só um aviso’. Mas só o fato de me ver livre de sua dissertação psicanalítica das cebolas já enche de sol o meu coração e, em estado de graça, vou dançando e saltitando pelas lajotas da garagem até onde deixo meu carro. Depois disso, logo pela manhã, estou ansiosa por um cansativo dia de trabalho. Compreendo inteiramente que Rubem e sua família sintam as mais sofridas emoções humanas, mas há limites: meus intestinos simplesmente não conseguem mais suportar. Claro que o que realmente quero fazer é socar os malditos, arrancar os cabelos, berrar muito e arranhar a cara deles até que ficarem esfolados vivos. Talvez assim, me digam por que estão fazendo isso comigo e com as drogas das cebolas!

Trabalho o dia todo pensando nesses atos insanos de esquartejamento. À noite, chego em casa à tempo de cozinhar o jantar e, mais uma vez, me nego a usar cebolas.

Rubem aparece à porta e sinto no ar sua respiração. Quando começa a abrir a boca para me dirigir a palavra viro em sua direção com uma enorme faca apontando-lhe o corte e berro:

– Não vou usar cebolas porque elas me fazem chorar! E che-ga!

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Samantha Abreu

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Conto baseado no livro “Viciada em Feng Shui”, de Brian Gallagher.

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Me and Myself

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foto: Ellen von Unwerth

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Porque ele a convenceu de que era louca, resolveu procurar a tal clínica.

É bonito esse lugar, assim bem tranqüilo e, mesmo que eu não tenha problema algum, aliás, penso que deve ser história desse povo desocupado, posso fazer de conta que tô em férias. Ai, aquele emprego tá mesmo me matando, tô cheia de relatórios pra fazer, será que vai demorar muito essa consulta? Moça, dá pra ver se o doutor me atende com prioridade, por favor? Se ela soubesse como ando cheia de coisas. A casa tá uma bagunça e ainda tenho que passar pra comprar o vaso que aquele palhaço quebrou. Nossa, agora me lembrei que ele ainda nem tirou tudo lá de casa. E se ele for lá agora à tarde? Vou ligar pra Arlete, ela que deixe ele entrar, pra ver uma coisa… Ah, não me tirem do sério, gente. Já tô aqui nessa clinica não é a toa. Arlete, o Chico passou por aí? Não deixe ele entrar, hein, Arlete! Não deixe! Eu não autorizo. E cuida de tudo, tchau. Ai, meu Deus! Quanto tempo será que ainda vai levar isso aqui? Nossa… que vaso seco, será que não tem uma mulher capaz de jogar água nessa planta, gente! Já são duas horas e eu vou atrasar no almoço de novo. Depois, quando volto, aquele boçal fica pedindo satisfações. Trabalho mil vezes mais do que ele e quer me cobrar alguma coisa, só porque sentou aquela bunda numa cadeira importante. Eu mereço, mesmo. Quando chegar, preciso lembrar de ligar pra Cristina e marcar meu horário, esse cabelo tá vergonhoso, pelo amor de Deus. Ninguém mais dá jeito nisso. Oi, moça, será que o doutor demora? Tô com o horário apertado. Vê isso pra mim? Obrigada! Detesto ter que sorrir quando tô com raiva, fica essa boca congelada aqui. Será que a pessoa percebe? Deve ser muito feio. Eu nunca percebi ninguém se obrigando a sorrir pra mim, sempre me fazem cara feia. Não ligo também, não vim ao mundo a passeio. Boa tarde, doutor, como vai? Posso sentar? Eu não estou muito bem, não. Veja, ando conversando demais comigo mesma, doutor, às vezes, até esqueço que o mundo é cheio de gente. E sabe o que é pior? Eu me faço perguntas e eu mesma me respondo. Não consigo tomar uma decisão sem me consultar antes. Ficamos horas em discussão, eu e eu mesma. Não tá dando mais. É isso mesmo, vou dizer bem assim pra ele, vai parecer mais claro, senão, como vou explicar essa maldita conversa? Posso falar que falo sozinha! Mas eu não falo sozinha, ninguém escuta o que tô pensando… mas é claro, né Clarice, se você está falando sozinha, ninguém precisa escutar. Ah, que saco ter que explicar uma coisa dessas.

Já sei, vou embora! Não, não vou mesmo, agora já estou aqui. Mas está demorando e prometo não discutir mais, se você ceder em algumas coisas. Em quê, por exemplo? Quero fazer amor de quatro. E eu com isso? Pode fazer! Ah, mas como faço isso à vontade se você não pára de me chamar de vaca? Não consigo me sentir bem dando de quatro com alguém me chamando de vaca. É, sei bem, mas quando ele te chama de cachorra você gosta. E daí, cada uma na sua. É… então, como ficamos? Se formos embora você me deixa em paz na hora H? Mas eu vou querer uma coisa também: chupar sorvete todo dia. Ah, nem a pau! Aí eu que engordo! E você acha que é só a sua bunda que dói naquela hora?

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Samantha Abreu

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foto: Ellen von Unwerth

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– Pois quando cheguei à festa, já tava todo mundo daquele jeito… caindo pelo cantos.

– E por que você não foi embora de lá? Tá cansada de saber como são essas festas.

– Ah, tinha homem bonito pra burro, cara!

– Mas você não pode ver um pau, que quer logo pendurar. Como é que pode?

– E você? Sem essa de lição de moral. Pra mim, não cola.

– É, mas pra ficar plantada aqui nessa sala de espera com você eu presto. Pra te falar umas verdades, não.

– A Pity pegou cinco caras. Saiu de lá com três.

– Tomara que não fique grávida também.

– Não fala isso. Também, não. Eu não estou. Pensamento positivo. Vamos lá… pensamento positivo.

– Olha a moça aí.

 

– Obrigada!

– Abre logo essa coisa. Tire esse sorriso da cara!

– Espera, vamos rezar.

– Que rezar o quê. Você não aprontou? Agora, deixe Deus em paz.

– Ai, tá bom. Vamos lá… Ai, Ai, Ai… Putaquepariu! Putaquepariu!

– Minha nossa, você tá ferrada, Nega!

– Ai, Ai, Ai!

– Liga pro cara! Vamos contar pra ele.

– Pois é, mas ainda não te contei o pior.

– Nossa, até me arrepiei.

– Tinha tanta luz colorida que eu não consegui ver a cara dele!

– Como assim? Co-mo as-sim??? E agora, vai pedir pensão pra quem?

– Ah, vou processar o dono da festa!

-… comé que é?!

– Eu podia ter ficado cega! Oras!

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Samantha Abreu